30.11.05

Finisterra sobre Finisterra.

Pega-se no livro Finisterra, do escritor Carlos de Oliveira, e escolhem-se pequenas passagens para apresentar as músicas. Ou então, o contrário: as canções tornam-se a banda sonora imaginária dos excertos do livro.
Com realização e locução de Eduardo Brito, o Finisterra de 1 de Dezembro (com repetição às 2:00 da madrugada do dia 7) tem o seguinte alinhamento de passagens:

1 – Mão Morta – O Jardim
"O jardim familiar (primeira fase do abandono) : montões informes de silvedo, buxo descabelado, urtigas, flores selvagens. As palmeiras de pouco porte incharam tanto que fazem pensar em anões velhos, doentes, com as suas cabeleiras, as suas folhas emaranhadas, caindo em arco até ao chão. "

2 – Daylight and Delight – Khonnor
"A luz do halo (que retarda a ameaça em torno da casa), o próprio tinir das goteiras, dão agora ao desenho um fulgor de fósforo, espectral. "

3 – Nick Drake – Place To Be
"Calcular com rigor o espaço em que posso mexer-me, a distância entre as coisas, o sítio certo das cadeiras. Andar altas horas através da casa: às escuras e sem tropeções. "

4 – Zbigniew Preisner – The Telescope
"O melhor é voltar atrás, ao começo de tudo. Há mil anos (ou mais), alguém repara atentamente numa garrafa cheia de água e descobre a primeira objectiva. Lá está a imagem da realidade, quando os raios solares passam através da água. "

5 – Nine Horses – Wonderful World
"Uma gravura abstracta. Perto da geometria, da arquitectura submersa nas coisas. Mas foi a minha imaginação (partindo do real, eu sei) a construí-la. Magia para filtrar o mundo, dar-lhe algum sentido. "

6 – This Mortal Coil – Holocaust
"Nas últimas linhas, decifro ainda estas frases: o litoral instável sob os nossos pés; as dunas prontas a mover-se; basta um golpe de vento. "

7 – Alpha - Rain
"As goteiras tintilam: como registar este som? E o murmúrio dos móveis, que a névoa ameaçadora absorve para esvaziar a casa (intimidade tecida com pequenos rumores), sem saber ainda se é capaz de esmagá-la? "

8 – Benjamin Biolay – Nuites Blanches
"Estudando a sombra, resolve-se (em parte) o problema das horas. O foco principal é a noite. Com as suas metamorfoses, que transformam sombra em penumbra, penumbra em lusco-fusco, lusco-fusco em luz. "

9 – Al Jolson – I Dreamed Of Jeannie With The Light Brown Hair
"A substância dos sonhos é imaterial e pouco importa que se concretize. Fronteiras muito fluídas, claro. Pode acontecer (aqui, além) a materialização. Se tivermos uma vara mágica (...) "

10 – Stina Nordenstam – The Thing About Fire
"Falemos do fogo. Nós, os camponeses, em último lugar (biblicamente, claro, os últimos são os primeiros). Antes, porém, uma advertência inicial sobre o escalonamento dos malefícios: fogo durante a vida; fogo depois da morte (pouca duração); e fogo toda a eternidade. Sequência que será respeitada. "

11 – Elliott Smith – Can’t Make A Sound
"Considera importante os gestos, as fisionomias (embora o lume não elucide muito: vultos na penumbra, lareira quase sem lenha). Mas essencial (de facto) é ouvir. Nada substitui os meandros das palavras, mesmo se as pessoas tentam ocultá-los (...). "

12 – Keren Ann – One Day Without You
"Descubro enfim o enigma da voz: imitar outra voz, recordá-la. Um laivo feminino. Uma chama ao longo dos anos, desde os serões quase sem lenha (...) "

13 – Ry Cooder – Paris, Texas
"Fecho os olhos. Voz sem nenhuma suavidade: gráfico de linhas rectas; um eixo irradiando (para baixo, para cima) ângulos agudos, até quando os sons são mais roucos (...) "


"Horas de regressar: não gosto desta escuridão. "

Finisterra – Paisagem e Povoamento, de Carlos de Oliveira, Edições Sá da Costa, 1978.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Olá! Gostei muito da selecção musical. Com a música usada pelo Kubrick conseguem-se imaginar as cenas dos filmes. É (era) um realizador realmente especial. Bom trabalho!
Só acho que as músicas do repertório "clássico" deviam ser ditas em português porque existem traduções. Por exemplo, em vez de se dizer Waltz, diz-se Valsa e Symphony é sinfonia. Já tinha visto isto acontecer noutro programa da Ruc em que anunciaram o «well tempered klavier» (de J. S. Bach) em vez do «cravo bem temperado» em português. É uma sugestão...
bj da Marta

1:41 AM  

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